A melhor, mais profunda, honesta e contendente reflexão que já teve acesso até aqui sobre a situação atual que o estado do Maranhão
enfrenta foi a do desembargador, escritor e professor Ney Bello Filho.
Sem maniqueísmos frenéticos ou
corporativismos abjetos, Bello mergulha fundo nos lagos sombrios da
nossa realidade com a coragem própria dos homens de bem, cuja indignação
não tem cortes demagógicos e hipócritas dos canalhas de plantão que,
mesmo em situações graves e até aterrorizantes, colocam as urnas e os
seus interesses mesquinhos à frente da vida humana.
Não obstante às poucas divergências em
alguns pontos levantados pelo desembargador Ney Bello, seu “desabafo” em
forma de artigo já é um documento histórico e merece constar nos anais
das principais instituições da República Federativa do Brasil.
Fiquem com:
Pedrinhas: a conta sempre chega!
”Ouso
dizer que culpados somos todos nós. Por omissão ou por ação, permitimos
que tudo chegasse aonde chegou. Uns de nós bem mais – outros um tanto
menos – fechamos os olhos para a violência e a degradação que invadiu os
quintais do nosso mundo”
Dizem
que o filósofo alemão Jüngen Habermas, em visita ao Rio de Janeiro,
olhou para aquele mundo de favelas sobre os morros, repletas de
excluídos do asfalto, dominadas por traficantes e carentes de quaisquer
atuações do Estado e murmurou para o cicerone ao lado: – “A minha teoria
da ação comunicativa, que se baseia na igualdade dos sujeitos do
discurso racional, teria sido outra se eu tivesse vindo aqui antes.” A
tradução corrente para este diálogo é que é impossível falar em
racionalidade, direitos e igualdades frente a desigualdades tão
profundas.
Há quem conte que o francês Michel
Miaille, perdido nas bordas de uma grande cidade do Brasil, e diante da
miséria clarividente perguntou a um aluno: – “O que vocês vão fazer
quando todas estas pessoas da periferia resolverem invadir os vossos
quintais?”
Não há como saber se tais diálogos
existiram, mas ‘se non é vero, é bene trovato’, e ambas as falas servem
como alegorias, sem muito rigor, para a análise que pretendo fazer dos
acontecimentos na ilha de São Luís.
O passado cobrou seu preço!
O presente tem a responsabilidade do futuro!
Somos uma sociedade ilhéu
minoritariamente de classe media baixa, comprimida entre bairros bem
próximos uns dos outros e cercados pela mesma massa de excluídos citada
pelo alemão. E a conta – a invasão das praias e dos quintais – a que
aludia o francês, virou primeira página do nosso jornal do dia.
O Maranhão é o Estado mais pobre da
Federação. Tem o pior IDH do país. Em nenhum outro lugar morrem tantas
crianças na primeira infância. Não há onde exista tanto analfabetismo,
desemprego, desamparo e miséria em solo brasileiro. Vejamos os dados do
Pisa – Programme for International Student Assessment – e descubramos
que a Atenas brasileira virou apenas brasileira. O Brasil está no
terceiro mundo. Estamos no terceiro mundo do Brasil. O Brasil tem
padrões sul-americanos de educação, saúde e emprego – todos muito ruins –
e nós temos padrões africanos – todos deploráveis. Estamos
qualitativamente mais próximos da Tanzânia e de Uganda do que do Chile
ou da Argentina. E isto é estatístico e está disponível para quem
desejar ver. São dados técnicos, e não mera figura de retórica.
Na penitenciária de Pedrinhas, esta
massa de excluídos, condenados e miseráveis, chega desde este universo
em que o Estado lhe nega tudo, e onde é impossível viver sem violência.
Ali, ela mergulha num processo maior ainda de desumanização, que reduz o
homem a uma sobra do que é ser humano. A família do preso é obrigada a
trabalhar para os chefes do crime, sob pena de morte; os detentos são
obrigados a permitirem que suas esposas mantenham relações sexuais com
outros – numa espécie de estupro consentido – em troca de sobrevivência.
E o que dizer destas mulheres que para não morrerem, têm de suportar
tamanha barbárie? É fácil traficar armas, drogas, celulares e o que mais
de necessário for, vez que a administração penitenciária ou é refém da
criminalidade ou conivente com ela. Olhar nos olhos de alguém pode
significar decapitação; querer alguma humanidade pode significar a
morte.
Neste estado d’arte, de completa
ausência de humanidade, de falência do Estado, de descontrole da
administração do espaço, o que nos assegura que nossos quintais não
sejam invadidos e as espoletas estourem os nossos miolos, na primeira
oportunidade? O que têm a perder os excluídos da cidade – reduzidos à
essência animal – que os fazem não invadir todos os quintais do mundo?
E que defesa é acessível aos
inocentes pobres do asfalto que não possuem hipótese alguma de
resistência? Que morrem carbonizados nos ônibus numa cidade onde não há
sequer unidade médica para queimados?
Há quem defenda para Pedrinhas a
Solução Final. Propositadamente eu uso o mesmo termo do nazismo alemão
para demonstrar o tamanho da absurdez e da desumanização que isto também
representa. Cercados de tanta miséria e violência muitos de nós pensam
violentamente. Ao considerarmos fazer com a penitenciária o mesmo que
foi feito no Carandiru, estamos nos igualando aos mesmos sub-homens que
ordenam decapitações, que queimam crianças nos ônibus, e que se
responsabilizam por 65 assassinatos em um ano, bem ao nosso lado. Este
dado, por si só, já representa metade de um Carandiru de Homicídios.
O complexo de Pedrinhas não é mais
uma penitenciária. É uma trincheira do crime. É uma escola de
delinquência que somente existe por que criamos uma fábrica de exclusão
social, fabricamos uma usina de miséria, nos afogamos num mar de
corrupção, envoltos numa ausência também criminosa.
Vamos eternamente nos prender ao
círculo vicioso de prender, desumanizar e matar? Vamos criminalizar a
exclusão, punir a miséria, mergulhar num genocídio dos miseráveis e
criminosos – embora degradantes e degradados – e manter intacta a
máquina que constrói esses perfis?
Recebemos a conta! Estupefatos como
se não fosse crível que a lama que rodeia a ilha pudesse em fim invadir
as areias das praias, a Jerônimo de Albuquerque, a Colares Moreira e a
Holandeses. Atônitos, perguntamos nas esquinas o que deve ser feito. Por
incompetência e egocentrismos seus e meus não percebemos através dos
anos o que se passava a nossa volta. Você que me lê e eu que escrevo
somos a minoria na nossa terra pelo simples fato de sermos alfabetizados
para além de sabermos desenhar o nome; e somos mais minoria ainda por
que podemos escrever em um computador e comprar um jornal para ler.
Quem são os culpados e o que podemos fazer?
Nossa origem portuguesa e cristã
europeia sente necessidade de procurar culpados. Ouso dizer que culpados
somos todos nós. Por omissão ou por ação, permitimos que tudo chegasse
aonde chegou. Uns de nós bem mais – outros um tanto menos – fechamos os
olhos para a violência e a degradação que invadiu os quintais do nosso
mundo.
Precisamos urgentemente de menos
dinheiro gasto em campanhas eleitorais; menos corrupção; mais
investimentos em saúde, educação, mobilidade urbana, moradia e tudo o
mais que pode fazer do bicho que existe dentro de cada ser, um
verdadeiro homem. Menos egocentrismo elitista e mais humanismo, talvez
ajudassem. É certo que mais policiamento, mais segurança, mais presídios
e uma urgente desconstrução da Trincheira Criminal de Pedrinhas são
metas prementes, porém incapazes de resolver o problema que se
instaurou.
Sobre o que me propus a dizer neste
artigo, lembro-me de um adesivo colado nos carros de Buenos Aires, pela
junta militar, acusada internacionalmente de matar diversos dissidentes e
ofender aos direitos humanos do povo argentino: Os argentinos são
direitos e humanos! O discurso do poder era transformar a observação dos
erros em meras ofensas externas, ditas por quem não amava a própria
pátria.
Vamos nos lembrar que deixar de reconhecer os problemas de quem se ama é o primeiro passo para perder o objeto amado.
Como dirá outra vez o eterno José Chagas, e dele lembro pensando na minha São Luís, no meu lugar.
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